"Cinema são imagens em que podemos acreditar"

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Já definiu Odete como um filme "em tudo próximo do real". Como demarca a fronteira entre verdade e inverosímil?

Os meus filmes partem sempre da realidade. Para escrever a história d'O Fantasma senti a necessidade de acompanhar, durante alguns meses, a rotina dos homens do lixo para depois construir a ficção a partir de coisas concretas que me ajudam a fazer uma teia ficcional com base naquela verdade. Neste filme foi a história das patinadoras de supermercado, que é uma coisa que parece delirante, mas que existem... Lá fora até pensam que é uma coisa que inventei, uma liberdade poética, ou uma invenção dos supermercados portugueses. Procurei sempre personagens saídas da realidade, mas depois tento fazê-las passar por outros percursos. Interessa-me contar histórias de pessoas com quem nos podemos cruzar na rua, mas que passam por coisas mais... invulgares.

Odete fala de relações com a morte. Ou seja, são olhares sobre como sente a perda?

É impossível esquecer as pessoas. Não vejo a morte como continuação, porque não acredito na vida depois da morte. No fundo, tudo isto nasce do medo que tenho de perder alguém que me é próximo. No filme tento ver o que faço. Se calhar isto vem dos filmes do John Ford. Uma das cenas de que mais gosto no A Paixão dos Bravos é aquela em que o Henry Fonda fala com o irmão que acabou de morrer. Fala com a campa... Isto é recorrente em filmes dele. Eu quis também que o filme fosse muito romântico. E é o cúmulo do romantismo ir-se viver para a campa de quem se ama. Apesar de ali haver também uma possessão.

Uma possessão nunca explicada...

Quis que, por diferentes leituras que se possa fazer, se acredite nela. A Odete é, a princípio. uma personagem leve, meia pop. E o filme vai enegrecendo, um pouco como acontecia no outro filme. Estamos a falar de morte, mas o filme não é pessimista. E quis que o filme tivesse um happy ending. Que fosse um filme desesperado, mas com algum júbilo.

Depois de Parabéns e Fantasma, este filme começa a revelar claras mar- cas autorais. O rigor na imagem, nas formas, luz, enquadramentos, o gos- to pela cor... Exigências técnicas...

Isso vem do cinema de que gosto. É claro que fiz a escola de cinema, mas aprendi a fazer filmes a ver filmes. Acredito que uma imagem não é indiferente. O que se escolhe enquadrar, e o que se deixa de fora, faz sentido. E acredito que os filmes só podem ser assim. Mas para mim, muitas vezes, a maneira de contar as histórias é muito intuitiva. Aí sei o que quero mas não exactamente a razão porque é assim... Mas tento encontrar sempre as formas mais simples e não gosto de efeitos especiais. Neste filme, mesmo indo para os lados do fantástico, quero sempre que essa ideia venha de coisas simples, como a chuva ou o vento. O cinema são imagens em que podemos acreditar. É possível figurar um fantasma, e neste filme há um outro fantasma. Interessa-me esse lado mágico do cinema. De coisas que, por estarem representadas, podemos acreditar nelas. E assim podemos acreditar no que possa haver de inverosímil daquelas personagens.

Porque gosta de personagens solitárias, desesperadas?

Tem a ver comigo. Para mim os filmes têm a ver com a história pessoal de cada um. É-me difícil contar a história de pessoas de quem me sinto distante. No fundo todas as personagens dos meus filmes sou eu. Sou a Odete, o Rui e o Pedro. E se calhar faço filmes para perceber como estas coisas funcionam dentro de mim.

Porque têm, até aqui, todos os seus filmes abordado o amor homossexual?

Isso aconteceu porque sou homossexual e tudo se relaciona com esta mesma ideia de honestidade de que falava. E já não estamos no tempo do cinema clássico em que os realizadores homossexuais não podiam contar certas histórias, se bem que tinha graça ver como davam a volta às coisas para falar delas. Estamos no século XXI... Eu acredito nas histórias que conto. Mas não faço filmes para um público gay. Irrita-me essa especialização. Não me interessa especializar numa via sexual. Interessa-me apenas que as pessoas acreditem nas personagens de que falo.

O filme tem uma banda sonora construída a partir da reunião de diversos temas. Como a definiu?

Trabalhei com um amigo, o Frank Beauvais. Ele ouve mais música do que eu. Eu tinha a ideia de pôr o MoonRiver no filme, e uma primeira ideia foi a de fazer a música do filme só com versões desse tema. Ele fez uma pesquisa super-exaustiva, experimentámos e não resultava. E então pensámos noutras coisas, e guiei-me pela sensibilidade dele. Eu, por exemplo, não conhecia os Bright Eyes. E aquela canção [A Perfect Sonnet] tem tudo a ver com o filme. Às tantas tínhamos tanta música no filme, que começamos a tirar.

E a dar espaço a silêncios, determinantes em certas sequências...

O filme vai ficando cada vez mais silencioso. Parte daquele lado mais vibrante, no supermercado, com versões de canções mais antigas. Depois a música quase acaba. E quando volta é quase como música composta para filme.

Porque não usou música original?

Pensei nisso, e cheguei a entrar em contacto com os Magnetic Fields. Mas não tinham tempo... Mandei- -lhes O Fantasma e não tive muito feed back. Não sei se o Stephin Merritt gostou...

Editou, só agora, O Fantasma em DVD em Portugal. Porque foi preciso esperar tanto tempo?

Acho que não havia dinheiro para produzir o DVD sem apoio. A Rosa Filmes só teve esse apoio há pouco tempo. O filme entretanto já tinha saído em DVD na França, Brasil, EUA, Hong Kong, Grécia e Holanda. É muito estranho... Esta edição está muito boa tecnicamente. Na edição americana, por exemplo, o filme estava muito claro.

Como tem falado a imprensa internacional dos seus filmes?

Onde tenho mais sucesso é em França. Foi surpreendente, porque não esperava a repercussão crítica que tive logo num primeiro filme. Além do sucesso público, porque o filme fez para aí mais de 50 mil espectadores, o que é muito bom. Nos EUA, falou dele o Village Voice e algumas revistas. O Fantasma teve distribuição em salas, como de resto o Odete vai ter. Mas é difícil chegar às grandes salas.

Há uma vida internacional para Odete?

Sim. Estreia a 11 de Janeiro em França. Depois, ainda sem data, a América. E há contactos com Inglaterra, Grécia, Brasil, Japão... Não faço os filmes para Portugal. Como gosto de ver filmes de todo o lado... De resto, nem acho que os meus filmes sejam particularmente portugueses, apesar de serem histórias passadas cá. Para mim os lugares onde filmo são muito importantes. Mas com isto não estou a dizer que tenha vergonha de ser português.

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